Canto II

A aurora se despedia do céu com um suspiro dourado, suas faces brancas e rosadas agora tingidas de um laranja envelhecido, como se o tempo pesasse até sobre a luz do amanhecer. Eu caminhava ao lado de Virgílio, meu guia, com o coração acelerado pela jornada que ainda ecoava em mim — o peso do Inferno, suas chamas e lamentos, ainda fresco na memória. O mar se estendia à nossa frente, um espelho vasto e inquieto, refletindo o céu que se equilibrava entre a promessa do dia e o mistério da noite. Meus pés tocavam a areia úmida da praia, mas minha alma parecia hesitar, dividida entre o desejo de seguir e o cansaço de carregar tantas visões.

De repente, algo cortou o horizonte. Um brilho, rápido como um pensamento fugaz, atravessava o mar em nossa direção. Era uma luz, não, um barco, movendo-se com uma velocidade que desafiava o vento, como se as leis da terra não o tocassem. Pisquei, tentando entender o que via, e virei-me para Virgílio, buscando respostas. Mas antes que eu pudesse falar, o brilho se intensificou, crescendo em tamanho e esplendor. O que parecia apenas um ponto luminoso agora revelava formas — asas brancas, imensas, batendo contra o ar com uma graça que não pertencia a este mundo. Meu coração disparou. Virgílio permanecia em silêncio, seus olhos fixos na aproximação daquele espetáculo celestial.

— Abaixe-se, rápido! Dobre os joelhos! — gritou ele, sua voz cortando o ar como uma lâmina. — É o anjo de Deus! Junte as mãos, Dante. A partir de agora, você verá muitos como ele.

Eu obedeci, sentindo o peso da reverência me curvar. O anjo, um barqueiro celestial, guiava o barco com uma majestade que tornava impossível desviar o olhar. Ele não precisava de remos; suas asas, brilhando como penas de luz, impulsionavam a embarcação por mares que nenhum mortal poderia navegar. O barco, leve como uma pluma, deslizava sobre as ondas sem afundar, como se a própria água se curvasse em respeito. À popa, o anjo se erguia, sua presença tão pura que parecia transformar o ar ao seu redor em algo sagrado. No convés, mais de cem almas, pálidas e etéreas, cantavam em uníssono. Suas vozes ecoavam como um hino antigo, “In exitu Israel de Aegypto”, as palavras do salmo enchendo o ar com uma harmonia que parecia dissolver o peso do meu peito.

O anjo fez o sinal da cruz, e, como se libertadas por um comando divino, as almas saltaram do barco para a praia, caindo sobre a areia com uma urgência silenciosa. O barqueiro não hesitou; com a mesma velocidade com que veio, ele partiu, suas asas cortando o horizonte até sumir na luz. As almas, agora em terra, pareciam perdidas, seus olhos vagando pela paisagem como se tentassem decifrar um enigma. O sol, já alto, lançava raios que pareciam flechas, aquecendo a areia e iluminando os rostos pálidos daquelas figuras. Eles nos viram — Virgílio e eu — e se aproximaram, hesitantes, mas com uma curiosidade que brilhava em seus olhos.

— Se vocês conhecem o caminho, mostrem-nos! Como chegamos à montanha? — perguntou uma voz entre o grupo, ansiosa, quase suplicante.

Virgílio ergueu a mão, sua expressão calma, mas firme.

— Vocês acham que somos guias experientes deste lugar? Somos peregrinos, como vocês. Chegamos aqui há pouco, por um caminho tão árduo que subir essa montanha agora nos parece um alívio.

As almas me observaram, e algo em seus rostos mudou. Um sussurro percorreu o grupo, um murmúrio de espanto. Eles perceberam que eu ainda respirava, que meu peito subia e descia com a vida que eles já não possuíam. Seus olhos se arregalaram, e alguns recuaram, pálidos, como se minha presença fosse um mistério maior do que o próprio Purgatório. A multidão se aproximou, atraída por mim como pombos famintos por migalhas, esquecendo, por um momento, sua pressa de subir a montanha.

Entre eles, uma figura se destacou. Um homem, ou melhor, a sombra de um homem, avançou com um brilho nos olhos que me era familiar. Ele abriu os braços, como se quisesse me envolver em um abraço. Meu coração pulou — era Casella, meu velho amigo, o músico cuja voz outrora acalmava minhas dores. Instintivamente, tentei abraçá-lo, mas minhas mãos atravessaram sua forma, encontrando apenas o vazio. Três vezes tentei, e três vezes meus braços voltaram ao meu peito, inúteis. Ele sorriu, um sorriso suave, quase divertido, e recuou um passo.

— Pare, Dante — disse ele, sua voz tão doce quanto eu lembrava. — Por favor, espere um momento.

Eu parei, o choque da maravilha ainda pintando meu rosto. Era realmente ele. Minha voz tremia quando falei.

— Casella, meu amigo! Como você está aqui? Por que demorou tanto para chegar?

— Nenhum mal me foi feito — respondeu ele, com uma calma que parecia carregar séculos. — Aquele que decide quem cruza e quando, negou-me a passagem várias vezes. Mas, há três meses, ele abriu as portas para todos que desejassem vir, com paz. Eu estava na foz do Tibre, onde as almas se reúnem, e fui recebido por ele. Para lá ele voa agora, levando os que não descem ao Aqueronte.

Eu senti um aperto no peito, uma mistura de saudade e esperança. A jornada até ali havia sido tão pesada, tão cheia de sombras e remorsos, que a presença de Casella era como um raio de luz.

— Se nenhuma lei nova te impede, Casella, cante para mim. Cante aquele amor que sempre acalmou minha alma. Estou tão cansado, tão sobrecarregado por tudo que vi…

Ele não hesitou. Sua voz, clara e doce, ergueu-se como uma brisa, cantando “Amor che ne la mente mi ragiona…”. Cada nota parecia dissolver o peso do meu coração, como se o próprio tempo parasse para ouvir. Virgílio, ao meu lado, parecia tão cativado quanto eu, e as almas ao redor se juntaram, seus rostos iluminados por uma paz que eu não via desde que deixei o mundo dos vivos. Por um momento, o Purgatório não era um lugar de expiação, mas um refúgio onde a música podia curar.

Mas a paz foi quebrada. Uma voz cortante, como um trovão, rasgou o ar. Era Catão, o guardião do Purgatório, sua figura imponente surgindo entre nós como um juiz.

— O que é isso, almas preguiçosas? Que negligência é essa? Corram para a montanha! Despojem-se do peso que os impede de ver a Deus!

As palavras dele foram como um chicote. As almas, como pombos assustados, abandonaram o canto e dispararam em direção à encosta, seus passos incertos, mas urgentes. Eu e Virgílio seguimos, nosso ritmo tão rápido quanto o deles, como se o próprio chão nos empurrasse para frente. A música de Casella ainda ecoava em minha mente, mas agora, diante da montanha que se erguia, alta e implacável, eu sabia que a redenção exigia mais do que canções — exigia movimento, sacrifício e um coração disposto a subir.