Canto I
O ar ainda cheirava a enxofre e lágrimas quando finalmente saí daquele lugar horrível, onde as sombras gritavam pra sempre de dor. Minhas pernas tremiam, não só de cansaço, mas de alívio por ver o céu de novo — um céu que não era uma maldição, mas um alívio de verdade.
Na minha frente, o horizonte era um azul tão forte que parecia limpar a alma só de olhar. O ar, que antes era pesado e cheio de desespero, agora era leve e tocava meu rosto como um sopro de Deus. No leste, Vênus — a “doce estrela do amor” — brilhava, pintando o amanhecer com um dourado que afastava até os pesadelos do céu.
Olhei pro sul e vi quatro estrelas tão brilhantes que pareciam faróis no céu, guardadas só pra quem é justo. Nunca tinha visto aquelas luzes antes; ninguém do meu tempo conhecia elas. Era uma visão antiga, esquecida no tempo, e o brilho delas me deixou cheio de um respeito que não sei explicar.
— Quem merece viver sob uma luz assim? — pensei.
Foi quando um homem saiu da sombra — um velho de barba branca e cabelos caindo no peito — uma presença forte. O rosto dele brilhava com o reflexo das quatro estrelas, dando a ele um ar quase sobrenatural. Antes que eu falasse, ele falou. A voz dele era grave, como um trovão longe:
— Quem é você, que teve coragem de fugir do rio cego do Inferno? As regras do abismo foram quebradas? Ou será que o céu mudou de ideia e agora deixa os condenados entrarem aqui?
Virgílio, meu guia, apertou meu braço forte e, antes que eu reagisse, já se curvava em respeito, puxando-me pra fazer o mesmo.
— Não viemos porque quisemos — disse ele, firme. — Uma mulher desceu do céu e, por causa das orações dela, fui enviado pra guiar esse homem. Ele ainda não enfrentou a morte final, mas chegou tão perto dela por causa da própria loucura que quase foi tarde demais.
O velho ficou sério, mas algo no olhar dele mudou ao ouvir isso. Virgílio continuou, agora mais calmo, quase falando como um diplomata:
— Ele quer liberdade, algo que você conhece bem, Catão. Afinal, não foi por isso que você deu a vida em Útica, deixando pra trás o manto que vai brilhar no Juízo Final?
O nome ecoou dentro de mim como um trovão. Catão de Útica. O homem que preferiu morrer a viver sob tirania. Um defensor da liberdade até o fim.
O velho pareceu pensar por um momento, os olhos presos a uma lembrança distante.
— Márcia… — murmurou, como se o nome ainda doesse. — Ela não pode mais me comover, não além do rio que separa os mundos. Mas, se uma dama do céu pediu por vocês, não precisam implorar. A vontade dela basta.
A expressão dele ficou mais suave, mesmo com o corpo firme, como uma espada cravada no chão.
— Purifica ele — ordenou, olhando pra Virgílio. — Adorna ele com um junco simples e lava o rosto dele, pra que nenhuma marca do Inferno fique quando ele estiver diante do primeiro ministro do Paraíso.
Antes que a gente falasse qualquer coisa, ele sumiu como neblina levada pelo vento.
Sem dizer nada, segui Virgílio até a praia deserta, onde as ondas batiam devagar na areia. Ele colheu um junco — e, num milagre silencioso, a planta brotou de novo assim que foi arrancada, como se a terra do Purgatório não deixasse nada morrer.
Enquanto ele me adornava com o talo verde, senti um peso sair de mim. As lágrimas que caíram não eram de dor, mas de algo mais raro: esperança *.
O sol já subia, iluminando o caminho à frente — um caminho difícil, mas que, pela primeira vez desde que entrei na escuridão, parecia levar a um lugar que valia a pena.