Canto IX

Depois de Carlos Martelo, fala a Dante Cunizza de Romano, irmã do tirano Ezzelino. Prediz-lhe iminentes desventuras na Marca de Treviso e em Pádua, e uma negra traição do bispo de Feltre. Folco de Marselha manifesta-se a Dante e lhe indica a alma resplendente de Raab, que favoreceu os hebreus na conquista da Terra Santa. Invectiva contra Florença e contra a Cúria Romana.


Enquanto eu me encontrava diante da luz vibrante e inebriante, as palavras de Carlo, claras como o próprio destino, ecoavam em minha mente. Ele havia me revelado os enganos que a sua descendência sofreria, mas com uma sabedoria amarga, sussurrara: “Taci e deixa o tempo seguir seu curso.” A aflição inevitável do futuro estava selada, e por mais que me incomodasse, eu sabia que não havia mais nada a ser dito. Tudo o que restava era esperar pela justiça que seguiria os infortúnios que ele mencionara, e que, como lágrimas inevitáveis, um dia viria.

A luz, esse ser divino com quem conversava, então se voltou mais uma vez ao Sol, como se atraída pela força irresistível que preenche toda existência com sua bondade absoluta. Aquela visão evocava em mim um sentimento profundo de compaixão pelas almas enganadas, aquelas que, por sua própria escolha, se afastavam dessa fonte de bem e se perdiam nas sombras da vaidade. Eu me perguntei, aflito, como tantos poderiam desviar seus corações daquilo que verdadeiramente importava.

Logo, um novo brilho se aproximou. Outro espírito resplandecente movia-se em minha direção, como se quisesse me agradar, e sua essência irradiava de uma maneira que só um ser puro e iluminado poderia. Beatrice, sempre atenta, ainda me observava com seus olhos penetrantes, os mesmos olhos que tinham assegurado que meus desejos seriam compreendidos e atendidos.

“Por favor, espírito abençoado,” murmurei, quase em prece, “ajude-me a entender, permita-me ver refletido em ti aquilo que agora apenas posso imaginar.” A luz diante de mim, como se inundada por um desejo de compartilhar sua sabedoria, começou a falar, sua voz suave, mas cheia de profundidade.

“Na terra italiana, entre Rialto e as nascentes dos rios Brenta e Piava, há uma colina não muito alta. De lá, há muito tempo, desceu uma chama que trouxe grande destruição para a região.” Seus olhos cintilaram, como se recordassem de uma época distante. “Eu nasci da mesma raiz que essa chama. Meu nome era Cunizza. Agora, estou aqui, brilhando na paz deste lugar, pois fui vencida pela luz desta estrela. Aceito alegremente o destino que me foi imposto, embora talvez pareça cruel ao teu povo.”

A forma como ela falava, com uma aceitação quase serena de sua própria história, me fez refletir sobre a natureza da redenção. Ela não parecia carregada pelo fardo do arrependimento, mas sim, iluminada pela compreensão da ordem cósmica que governava todas as coisas. Era como se tivesse encontrado uma verdade profunda que superava as interpretações mortais de justiça e punição.

“Grande fama ficou associada a mim,” continuou Cunizza, “e antes que mais cem anos se completem, essa memória ainda estará viva. Vês como o homem deve se esforçar para que outra vida supere a primeira?” Havia um toque de advertência em sua voz, uma lembrança de que a glória terrena é efêmera e que o verdadeiro valor só pode ser encontrado além dos limites do tempo.

Ela prosseguiu, revelando a minha visão paisagens distantes e tragédias por vir. “Ainda que a turba que habita entre o Tagliamento e o Adige não se arrependa de suas ações, logo Padova verá a mudança nas águas que banham Vicenza, um reflexo da crueldade de seus habitantes. E onde os rios Sile e Cagnan se encontram, um líder arrogante caminha com a cabeça erguida, mas já está sendo preparado um fim sombrio para ele.” Suas palavras eram sombrias, como profecias inevitáveis, repletas de dor e perda.

Ela então mencionou Feltro e sua tragédia, uma catástrofe iminente que devastaria sua cidade e seu povo, como um presságio de tempos mais sombrios. As visões que ela pintava diante de mim eram de sangue, sofrimento e traições, todos ecos das escolhas humanas, e por mais que tentasse, não conseguia afastar o peso dessas revelações.

Quando Cunizza terminou, sua atenção se voltou para outra coisa, e eu senti sua presença se afastar, a luz dela agora fundida com o movimento celestial ao seu redor. No entanto, antes que eu pudesse me perder nesse pensamento, uma outra figura familiar, cuja presença já conhecia, se aproximou. Ela irradiava como um rubi sob a luz do sol, sua essência transbordando de alegria pura, e o brilho ao seu redor parecia crescer com a força de sua felicidade.

Eu me aproximei com respeito, sabendo que estava diante de algo sagrado. “Deus vê tudo,” disse, minha voz baixa, quase em reverência, “e seu olhar está dentro de ti. Não há desejo ou pensamento que te possa escapar, abençoado espírito.” O ser celestial sorriu com gentileza, como se fosse possível vislumbrar a ternura de Deus através de sua presença, e suas palavras fluíram como música.

“Eu fui conhecida como Folco,” começou ela, sua voz ecoando como um canto suave entre as estrelas. Ela falou de sua vida na terra entre os rios Ebro e Macra, uma região onde os ventos do ocidente e do oriente se encontram. Narrando sua história com uma serenidade que contrastava com o calor de sua memória, ela mencionou antigos amores, paixões ardentes que rivalizavam até com os desejos mais intensos das figuras mitológicas. No entanto, diferente das almas mortais, ela não sentia remorso; o peso do pecado não mais a perturbava. Aqui, no paraíso, havia apenas risos e alegria, não pela culpa passada, mas pela ordem divina que tudo ajustava.

Conforme ela falava, senti uma serenidade tomar conta de mim. A verdade de que tudo, até os erros mais profundos, serviam a um propósito maior parecia ressoar com uma clareza antes inimaginável.