Canto VIII

Dante e Beatriz elevam-se à estrela de Vênus, onde estão os espíritos daqueles que outrora foram propensos às paixões amorosas. Encontram Carlos Martelo, que, referindo-se à índole mesquinha de seu irmão Roberto, explica como pode um bom pai gerar um filho mau e, enfim, quão providencial é a Natureza em seus decretos e quão vaidosos são os homens que não seguem suas indicações.


O calor do ambiente ao meu redor parecia mais intenso, quase palpável, enquanto eu avançava na jornada ao lado da minha guia. O brilho suave, mas avassalador, ao nosso redor me lembrava o esplendor de Vênus, aquela estrela que, segundo as crenças antigas, outrora irradiava o louco amor de Afrodite, envolta no seu epiciclo celestial. Eu sabia, então, que estava entrando em uma esfera muito além da compreensão humana.

Não percebi o exato momento em que ascendemos para esse novo reino, mas tive a certeza de que lá estávamos, ao ver minha guia radiante, sua beleza transcendente refletindo a própria luz ao nosso redor. Era como se toda a sua essência se fundisse com a magnificência deste lugar. A sensação de leveza no ar ao nosso redor era quase como uma promessa silenciosa de que estávamos cada vez mais próximos da verdade.

Olhando ao redor, pude ver luzes flutuando e girando de maneira harmoniosa. Algumas moviam-se com rapidez, outras lentamente, mas todas pareciam seguir um padrão invisível, talvez ditado por suas próprias visões internas, algo inacessível à minha compreensão humana. As chamas dessas luzes dançavam como faíscas em uma fogueira distante, e em meio a esse balé de luz, um coro angelical ressoava, ecoando pelos confins daquele reino. O som era puro, cristalino, preenchendo cada parte do meu ser, até que se tornou difícil distinguir o que era parte de mim e o que vinha do ambiente. Então, percebi as vozes – um ‘Hosana’ perfeito – um cântico que parecia surgir de dentro de mim, de um desejo nunca satisfeito.

Uma dessas luzes se aproximou, brilhando mais intensamente que as outras, e uma voz clara e serena falou, como se estivesse esperando por mim todo esse tempo. “Estamos prontos para atender aos teus desejos, pois aqui não existe maior prazer do que trazer alegria aos que chegam. Giramos juntos com os anjos celestiais, como uma única unidade, movidos pelo amor divino que tu já mencionaste ao falar do céu que move todas as coisas.”

Fiquei momentaneamente paralisado pela força da presença dessa alma, mas logo meus olhos foram guiados de volta para minha guia. Ela, com uma tranquilidade que só ela poderia ter, me acalmou com seu olhar, confirmando que eu podia continuar, que eu estava pronto para enfrentar essa nova revelação. Com o coração repleto de emoção, virei-me novamente para a luz à minha frente e, com uma voz carregada de afeto, perguntei: “Quem sois?”

Ao ouvir minhas palavras, vi a luz à minha frente vibrar com uma nova alegria, como se a própria felicidade dessa alma tivesse se multiplicado. Ela então começou a falar, sua voz suave, mas firme, como a de alguém que detinha segredos antigos. “Fui por pouco tempo parte do mundo terreno, e se tivesse vivido mais, muitos dos males que sobrevieram à minha terra não teriam ocorrido. A minha alegria me envolve e me esconde da tua visão plena, assim como um casulo envolve a crisálida. Mas, apesar disso, amaste-me bem durante o tempo que passei entre os mortais, e se tivesse vivido mais, teria mostrado a ti ainda mais do meu amor.”

Enquanto ouvia essa alma falar, cada palavra desenhava imagens vívidas na minha mente. Ela falava sobre terras distantes banhadas pelo Ródano e pelo Danúbio, terras que estavam destinadas a florescer sob sua liderança, se não tivesse sido levada tão cedo. Havia uma melancolia no que dizia, como se visse o que poderia ter sido, as grandes nações que poderiam ter prosperado, se a injustiça e a má governança não tivessem arruinado tudo. Suas palavras carregavam uma sabedoria profunda, uma compreensão da natureza humana e de como, tantas vezes, o destino é subvertido pela ganância e pelos erros daqueles que detêm o poder.

Ela falou sobre seu irmão, sobre como ele deveria ter visto o que estava por vir, como a pobreza e a ganância ameaçavam seu reino. “Se ele tivesse prestado atenção, teria evitado os infortúnios que estão prestes a cair sobre ele. Era necessário que alguém com mais discernimento e menos avareza guiasse essas terras.” Suas palavras ecoavam como uma advertência, uma visão clara de um futuro que poderia ter sido evitado.

Minha mente fervilhava com as revelações que ela me trazia, e eu não pude deixar de perguntar o que já se formava como uma dúvida em meu coração. “Como é possível que de uma semente doce, nasça algo tão amargo?” A resposta veio rápida, clara e implacável: “O bem que move este reino é perfeito em sua providência, mas mesmo assim, no mundo mortal, a natureza e o destino nem sempre caminham em harmonia. Se não fosse pela intervenção divina, os céus produziriam efeitos caóticos, sem qualquer ordem ou propósito, mas isso não pode acontecer, pois as inteligências que guiam as estrelas são perfeitas.”

Sua explicação me fez entender como o destino e a providência divina se entrelaçam, guiando os acontecimentos, ainda que não compreendidos pela mente humana. Continuei ouvindo com atenção enquanto ela concluía que, na terra, os homens muitas vezes nascem com destinos diferentes dos seus talentos. Reis são feitos daqueles que deveriam ser padres, e padres são feitos daqueles que nasceram para empunhar espadas. E assim, o caminho dos homens se desvia da rota certa, e o caos reina no lugar da ordem divina.

As palavras daquela alma continuaram a ecoar dentro de mim, enquanto eu tentava absorver a profundidade do que havia acabado de ouvir. A jornada continuava, e eu sabia que cada passo me levava para mais perto da verdade última, daquela compreensão perfeita que apenas os que completaram sua travessia poderiam alcançar.