Canto VII

Desaparecem os bem-aventurados cantando. Beatriz explica como a crucificação de Cristo restituiu ao homem a dignidade perdida, a liberdade que lhe foi conferida por Deus. Os anjos e os homens, por sua natureza, são livres e imortais. O homem, porém, pecando, abusou de sua liberdade e deformou a imagem de Deus que tinha em si. Não podia reparar a falta por si mesmo, pois não podia humilhar-se tanto quanto Adão, que em seu orgulho quis se elevar. A Deus convinha perdoar ou punir. Em sua sabedoria infinita, Deus perdoou e puniu ao mesmo tempo. Puniu a humanidade em Jesus Cristo, e nele a fez novamente livre.


A névoa de luz ao meu redor oscilava como uma melodia distante, quase indistinguível. Eu estava imerso no brilho sublime e inebriante desse espaço divino, quando ouvi os cânticos — vozes serenas que pareciam surgir das próprias estrelas. Elas ressoavam, elevando-se em uníssono: “Osanna, sanctus Deus sabaòth”, palavras tão profundas que meu espírito mal podia conter. A substância celestial dançava diante de meus olhos, movendo-se com uma graça incompreensível, como faíscas atravessando o céu, distanciando-se tão rápido que em um piscar de olhos desapareceram na vastidão do Paraíso.

Fiquei ali, lutando com as dúvidas que borbulhavam em minha mente. Queria respostas, respostas que só Beatriz poderia me dar, mas as palavras falhavam em escapar dos meus lábios. “Pergunte, pergunte a ela”, eu murmurava para mim mesmo. No entanto, o peso da reverência que sentia por sua presença divina me impedia de pronunciar qualquer coisa, como se estivesse preso em um sonho onde o corpo recusava a obedecer à mente.

Beatriz, que sempre parecia compreender minhas inquietações antes mesmo que eu as expressasse, lançou-me um sorriso — um sorriso tão radiante que poderia aquecer o coração de qualquer homem perdido na escuridão. Seu olhar encontrou o meu, e sua voz, clara como a luz do sol, ecoou através da eternidade. “Eu sei o que te aflige. Estás tentando entender como a justa vingança pode ser justamente punida.” Sua voz era firme, mas cheia de ternura. Ela sabia que eu buscava respostas para os mistérios divinos, para os julgamentos e para o propósito do sacrifício, e estava disposta a iluminar minha mente.

Enquanto ela falava, cada palavra parecia desvendar segredos profundos do universo, camadas de entendimento que eu jamais teria alcançado por conta própria. A humanidade, disse ela, condenou-se ao afastar-se de Deus, um afastamento que se estendeu através das gerações, até que o próprio Verbo divino decidiu descer ao mundo e, com um único ato de amor eterno, reaproximar a criação ao Criador. Ela explicou que a natureza humana, unida ao seu Criador, era pura e boa, mas, ao desviar-se do caminho da verdade, encontrou-se banida do Paraíso. A cruz, com todo o seu sofrimento, foi a única maneira de restaurar esse equilíbrio.

Fiquei em silêncio, absorvendo suas palavras enquanto minha mente vagava por essa vasta reflexão. A morte de Cristo, tão cheia de significado, não era apenas um sacrifício, mas também uma demonstração da justiça e do amor divinos. Ela olhou profundamente em meus olhos, como se soubesse que eu ainda lutava para entender plenamente o motivo pelo qual Deus havia escolhido esse caminho específico para a redenção da humanidade. “Esse mistério”, ela continuou, “não pode ser completamente compreendido por aqueles cujas mentes não foram completamente consumidas pelo amor divino.”

Sua explicação, porém, não parou por aí. Ela me guiou ainda mais fundo no abismo do eterno conselho de Deus, revelando que, para que a justiça divina fosse verdadeiramente satisfeita, a humanidade jamais poderia, por si só, redimir-se de sua queda original. Somente através do sacrifício do Filho de Deus, encarnado e humilhado, a redenção poderia ocorrer. Beatriz falava com tal clareza e convicção que todas as minhas dúvidas começaram a dissipar-se como a neblina ao amanhecer.

Ela continuou, respondendo até mesmo às perguntas que eu não havia feito, explicando como as coisas materiais — água, fogo, ar e terra — eram destinadas a perecer, ao contrário das criaturas espirituais, como os anjos, que existiam em sua forma perfeita, imunes à corrupção do tempo. A cada palavra, ela me conduzia mais profundamente no entendimento do universo e das leis que o governavam. O esplendor divino, o brilho eterno, refletia-se em suas palavras e gestos, e, por um momento, senti como se pudesse ver o próprio coração da criação, pulsando com a vida dada pelo Criador.

Minha mente, ainda atordoada, processava a verdade revelada — a compreensão de que tudo, desde o menor elemento até a alma mais elevada, estava de alguma forma conectado a esse propósito maior. E quando Beatriz mencionou a ressurreição, a esperança de que, um dia, a carne humana, mesmo após sua queda e decomposição, seria restaurada, senti uma onda de paz inundar meu ser. Era como se, pela primeira vez, eu pudesse entrever o grande desígnio divino, um plano tão vasto e perfeito que transcende qualquer compreensão mortal.

Eu olhei para Beatriz, cujas palavras haviam se tornado faróis de luz em minha mente, e soube que, apesar de todas as perguntas que ainda poderiam surgir, eu estava no caminho certo. O caminho da verdade, o caminho da redenção. Uma estrada que, por mais difícil que fosse, me levaria à compreensão plena do amor divino. E, naquele momento, senti-me mais perto de Deus do que jamais estivera, mais ciente da vastidão de Sua bondade e justiça.