Canto V
Continuando o discurso do canto anterior, Beatriz explica a Dante que o voto é um pacto entre o homem e Deus. A matéria do voto pode ser mudada, mas deve ser substituída por oferendas de maior mérito. Beatriz lamenta a leviandade dos cristãos.
Beatriz e Dante voam, então, para a esfera de Mercúrio, onde estão as almas dos homens que viveram uma vida digna e adquiriram fama no mundo. Um espírito fala ao Poeta.
Quando Beatriz começou a falar, a voz dela tinha uma força que ultrapassava qualquer emoção humana. Era como se o calor do amor dela — algo além de tudo que se pode viver na Terra — tivesse o poder de atravessar minha alma, vencendo até a firmeza do meu olhar. Mal conseguia suportar o impacto da presença dela. Me perguntei, fascinado, de onde vinha tamanha força. Mas logo entendi: estava tudo ali, diante de mim — na perfeição do olhar dela, no modo como captava a luz eterna, e em como isso guiava seu ser naturalmente em direção ao bem.
Enquanto ela falava, parecia que essa mesma luz eterna já ardia dentro de mim, iluminando o que eu entendia. Senti um clarão de verdade acender algo em mim — amor puro, incontrolável. E as palavras de Beatriz vieram com uma clareza que cortava fundo:
— Se nosso amor é seduzido por qualquer outra coisa, é apenas um reflexo mal interpretado daquela luz divina.
Eu a escutava com atenção total. Ela explicava, com uma paciência firme, que minha dúvida era se um voto menor poderia ser satisfeito por outro tipo de serviço e ainda assim garantir a paz da alma.
Beatriz seguiu, sem hesitação. A voz dela era firme, constante, como alguém que nunca precisa pensar duas vezes. Explicou que o maior dom que Deus, em sua generosidade infinita, nos deu foi a liberdade de vontade — a capacidade de decidir. Esse era o presente mais alinhado com a bondade divina. E só criaturas com intelecto, como nós, receberam esse dom.
A partir daí, ela me levou a entender o que realmente significa um voto. Quando alguém faz um voto a Deus, entrega a Ele o que tem de mais precioso: a própria vontade. E se alguém tenta trocar isso por outra coisa? Beatriz foi direta:
— Não dá. Não se pode tomar de volta o que já foi oferecido ao Divino, tentando substituir por algo menor, sem a permissão de Deus.
As palavras dela fluíam com naturalidade. Eu estava completamente imerso no significado daquilo.
Ela falou da importância de manter o pacto. Citou os antigos hebreus, que eram obrigados a oferecer sacrifícios, mesmo quando um era substituído por outro. Explicou que, embora o conteúdo do sacrifício pudesse mudar, o espírito do pacto jamais podia ser quebrado sem autorização. A profundidade do que ela dizia era enorme. Me senti pequeno diante daquela clareza.
Nesse ponto, Beatriz foi ainda mais direta:
— Não trate os votos de forma leviana. Se um voto é feito, ele deve ser cumprido. Melhor teria sido Jefté admitir o erro do que perpetuar um sacrifício tolo.
Ela também mencionou o líder dos gregos, cuja insensatez levou à dor de Ifigênia:
— Isso fez tanto os tolos quanto os sábios chorarem.
A fala dela tinha um peso emocional que expunha a fragilidade das decisões humanas diante das promessas feitas a Deus.
Então, Beatriz voltou o foco para a fé. Disse que os cristãos deveriam ser firmes em suas ações, sem se deixarem levar por desejos ou ideias passageiras.
— A base da salvação está nos Testamentos — o Novo e o Velho — e no pastor que guia a Igreja. Se surgir algum desejo corrupto, lembrem-se da própria humanidade. Não se tornem tolos cegos, como ovelhas perdidas.
Quando ela parou de falar, o silêncio foi absoluto, como se o mundo tivesse congelado. Senti o peso de tudo o que ouvira. Beatriz se virou, olhando para o céu com ansiedade, onde o mundo parecia mais vivo e brilhante. O silêncio dela fez novas perguntas surgirem na minha mente — perguntas fortes, que quase explodiam, mas que foram abafadas pela intensidade do momento.
De repente, fomos transportados para o segundo reino, como uma flecha atravessando o espaço antes mesmo do arco repousar. Assim que chegamos, vi Beatriz cercada por uma luz tão intensa que fazia o planeta inteiro parecer mais brilhante. Era como se a criação sorrisse para ela. E ao vê-la, senti que algo em mim havia mudado — aquela luz me transformava.
Mais de mil luzes começaram a se mover em nossa direção. Cada uma irradiava uma alegria impossível de conter. Quando se aproximaram, ouvi uma voz suave:
— Aqui está quem aumentará nosso amor.
Cada luz revelava uma sombra pura de felicidade, brilhando com intensidade.
Fiquei em silêncio, tentando absorver tudo aquilo. Um desejo profundo de entender quem eram e quais eram suas histórias tomou conta de mim. Um dos espíritos, com uma bondade evidente, falou direto comigo:
— Pergunte o que quiser.
Beatriz me encorajou:
— Pergunte sem medo, como se falasse com um ser divino.
Olhei para a luz diante de mim e falei:
— Vejo como você brilha em sua própria luz, e como seus olhos resplandecem. Mas não sei quem você é, nem por que está nesta esfera, oculta aos mortais.
A luz brilhou ainda mais. Antes de responder, se ocultou numa explosão intensa — como se a alegria fosse grande demais para caber em palavras.