Canto IV
Duas dúvidas agitam o espírito do Poeta. A primeira é relativa à doutrina platônica, segundo a qual todas as almas voltam para as estrelas de onde saíram. A outra é: se a violência tolhe a liberdade, como pode ser justo que as almas forçadas a romper os votos tenham desconto de glória? Beatriz responde à primeira dúvida restringindo o sentido da doutrina platônica. Em relação à segunda, ela diz que aquelas almas não consentiram no mal, mas não o repararam voltando ao claustro, quando tiveram a possibilidade de fazê-lo.
Eu estava dividido entre dois desejos conflitantes, preso numa encruzilhada mental. Era como encarar dois pratos igualmente tentadores, mas tão distantes entre si que qualquer escolha parecia impossível. Mais ainda: era como ser uma ovelha cercada por dois lobos famintos, sem saber para que lado correr. O silêncio ao meu redor nascia dessa hesitação, da necessidade de processar o turbilhão de dúvidas que tomava minha mente.
Mesmo sem dizer nada, minha inquietação era visível. Meu rosto expunha tudo: cada desejo, cada pergunta queimando por dentro. Nem precisava falar — minhas expressões gritavam. Beatriz percebeu de imediato. Como Daniel diante de Nabucodonosor, ela entendeu o tumulto interno que me dominava. Com um tom calmo, quase maternal, começou a dissolver a névoa da confusão.
— Vejo bem — disse ela, cravando seus olhos nos meus — como você está dividido entre esses dois desejos. Ambos te pressionam de formas diferentes, ao ponto da sua mente se enrolar, sem achar saída. Primeiro, você se pergunta como uma boa vontade pode ser diminuída pela violência alheia. Depois, vacila diante da ideia do retorno das almas às estrelas, como Platão propôs.
Ela fez uma pausa. Nesse intervalo, eu absorvia suas palavras como chuva depois de longa seca. O que viria a seguir parecia a chave para me libertar.
— Vamos tratar dessas questões uma por vez — continuou ela — , começando pela que mais te incomoda. Moisés, Samuel, João… esses grandes espíritos não ocupam um lugar mais alto no céu do que as almas que você viu. A diferença está na intensidade com que vivem a eternidade. Eles aparecem nessas esferas não porque pertençam a elas, mas para que sua mente limitada consiga entender a estrutura do céu.
A explicação era clara, mas cheia de camadas. As palavras de Beatriz tinham peso. Ela me guiava por um labirinto de ideias com leveza, como se eu flutuasse ao lado dela, absorvendo tudo.
— Sobre a segunda questão, o tal retorno das almas às estrelas — ela disse — , isso não é literal. Platão falava de forma simbólica. Ele se referia à influência dos astros sobre as almas, não a um retorno físico.
Eu começava a entender, mas outra dúvida se formava. Beatriz percebeu antes mesmo que eu dissesse.
— A violência só é desculpável quando a vontade de quem sofre não colabora em nada. Mas aquelas almas que você viu poderiam ter resistido, como São Lourenço ou Muzio Scevola. Ambos mantiveram a vontade firme mesmo sob tortura.
As palavras de Beatriz me atingiram como uma onda, soltando os nós na mente. Ela queria que eu entendesse que, mesmo sob pressão, a vontade humana ainda tem algum controle. Ainda há escolha, mesmo que mínima.
— Agora você entende — disse ela, mais suave — por que aquelas almas não podem ser completamente desculpadas pela violência. Suas vontades cederam, ainda que pouco. É por isso que estão onde estão.
Começava a encontrar respostas, mas algo ainda me incomodava. Havia um contraste entre o que Beatriz dizia e o que Picarda havia falado sobre força e violência. Mais uma vez, Beatriz se adiantou.
— Picarda falou da vontade absoluta — explicou ela — , e eu me referi à vontade relativa — aquela que cede por medo de algo pior. As duas estão certas, mas falam de contextos diferentes.
A clareza dela era desconcertante. Beatriz desfazia dilemas complexos com uma simplicidade desconcertante. E mesmo assim, eu sentia que só arranhava a superfície do que ela queria me mostrar.
— Ó amada do primeiro amor — murmurei, sem perceber, com a voz tomada por reverência — , você ilumina minha mente e meu coração de um jeito que eu nunca imaginei possível. Não sei como agradecer.
Ela me olhou com uma intensidade que fez minha alma tremer. Eu entendi, ali, que estava diante de algo que ultrapassava todas as minhas preocupações. O que antes parecia inalcançável agora estava ao meu alcance. Bastava estender a mão e aceitar o que me era oferecido.
Mas ainda restava uma última pergunta. Com o coração acelerado, olhei para Beatriz.
— Uma pessoa pode compensar as promessas não cumpridas com outros atos? Dá pra equilibrar a balança divina assim?
Ela me olhou com aqueles olhos carregados de uma luz indescritível. Por um instante, quase me perdi no brilho daquele olhar. As faíscas de amor que emanavam dela eram tão fortes que minhas forças fraquejaram. Precisei desviar o olhar, vencido pela intensidade da sua presença.
Quase me perdi. Mas sabia que ela logo me guiaria de novo.