Canto XXIX
Beatriz esclarece a Dante que os anjos foram criados por Deus no mesmo tempo em que foram criados os céus. Fala-lhe dos anjos fiéis e dos anjos rebeldes, os quais foram precipitados no Inferno. Censura os falsos filósofos e os padres mentirosos que esquecem que o escopo da pregação é persuadir os homens a serem cristãos e vendem indulgências para obter bens materiais.
O horizonte estava pintado com as cores do crepúsculo, quando Beatriz, à minha frente, manteve seu olhar fixo e misterioso, sua face iluminada por um sorriso que parecia conter segredos profundos. Ficamos em silêncio por um momento, enquanto eu, ainda tomado pela grandiosidade do que havia testemunhado, mal conseguia conter a agitação de meus pensamentos. Ela sabia o que eu buscava, o que queria compreender. E, como se pudesse ler diretamente em minha alma, começou a falar, sua voz suave mas firme, cortando a atmosfera celestial ao nosso redor.
“Eu direi aquilo que deseja saber, pois já o vi claramente onde cada ‘onde’ e ‘quando’ se unem”, disse ela, sua voz ressoando como uma melodia antiga e profunda, ecoando nos confins da minha consciência. As palavras fluíam de sua boca com a naturalidade de quem possui conhecimento absoluto. “O amor eterno, aquele que precede e sustenta todas as coisas, não se manifesta para ganhar algo para si, pois nada pode ser acrescentado a sua perfeição. Mas, pelo contrário, Ele se reflete em seu esplendor infinito para poder dizer ‘Eu existo’, afirmando-se na eternidade.”
Suas palavras se entrelaçavam com a vastidão que nos cercava, como se os próprios céus se dobrassem a cada frase proferida. Ela continuou, detalhando a criação não como um evento isolado, mas como um fluxo contínuo de amor divino. “Em seu ato de amor, fora do tempo e da matéria, Deus se manifestou em novas formas de amor, fazendo surgir o universo e tudo o que nele habita. Forma e matéria se uniram, sem falhas, assim como três flechas lançadas de um arco se encontram em pleno voo. Tudo isso, criação e ordem, foi instantâneo, sem intervalo, como a luz atravessando vidro ou cristal, transformando-se no que agora percebes.”
Eu podia sentir o peso da sabedoria que fluía de suas palavras, como se todo o conhecimento do universo estivesse sendo revelado em fragmentos cuidadosamente selecionados. Beatriz então mencionou a criação dos anjos, uma verdade escrita em textos sagrados, algo que podia ser compreendido se a razão fosse adequadamente guiada. “Os anjos foram criados antes mesmo da formação do mundo”, explicou ela, trazendo à luz um conhecimento ancestral. E, em seu tom, havia uma certeza tão cristalina que não havia espaço para dúvidas.
Ela prosseguiu, revelando a queda de parte desses seres celestiais, um evento que abalou a ordem do cosmos. “O princípio da queda foi o orgulho maligno daquele que você viu, esmagado sob o peso de todo o mundo”, disse Beatriz, referindo-se a Lúcifer, cuja ambição o havia arrastado para longe da graça divina. Por outro lado, aqueles que permaneceram fiéis a Deus foram recompensados, seus corações preenchidos pela graça, e suas vontades firmes, impossíveis de desviar do bem supremo.
Sua explicação sobre o livre arbítrio e a recepção da graça divina soava como uma advertência contra qualquer complacência. “Que fique claro”, alertou, “que receber a graça depende de quão aberto está o coração para acolhê-la.”
Por um breve momento, senti a tensão de suas palavras se aliviar quando ela mencionou as escolas da Terra, onde se debatiam questões filosóficas sobre a natureza dos anjos. “Os estudiosos terrenos leem que os anjos podem entender, recordar e querer. Mas é preciso ver a verdade com clareza, sem confundir o que se ensina nas academias com a realidade divina. Estes seres celestiais, uma vez que contemplaram a face de Deus, jamais desviaram seus olhares. Eles não precisam recordar algo separado, pois a visão de Deus preenche tudo.”
Enquanto Beatriz falava, percebi o contraste entre o entendimento celestial e o humano, onde até os mais sábios, em sua busca pela verdade, muitas vezes se perdiam em teorias e especulações, confundindo aparências com a essência.
Ela suspirou levemente, como se lamentasse pela humanidade. “Vocês, lá embaixo, seguem caminhos tortuosos, desviados pelo amor à aparência e à opinião. E essa falha é ainda mais grave quando a palavra divina é distorcida ou ignorada.” Seu tom tornou-se mais firme, quase como uma advertência solene. “O sangue derramado para espalhar a mensagem de Deus no mundo é esquecido, e muitos, ao invés de humildemente se aproximarem dessa verdade, preferem inventar fábulas e agradar as multidões com discursos vazios.”
Era impossível ignorar o peso de suas palavras. Elas expunham a corrupção e a negligência dos que, em vez de espalharem a verdade do Evangelho, se afundavam em vãs invenções. Beatriz então, com um olhar penetrante, trouxe-me de volta à questão central: “Mas, já divagamos demais. Voltemos à senda correta, para que teu caminho possa ser mais breve.”
Seu olhar se expandiu, abrangendo tudo ao nosso redor. “A natureza dos anjos é tão vasta em número que nenhuma palavra mortal poderia alcançar sua totalidade. Se observares o que Daniel revelou, verás que há um número oculto entre milhares, refletindo a infinita sabedoria de Deus.”
A visão de Beatriz era clara e precisa, como se toda a complexidade do cosmos se refletisse em seus olhos. “O primeiro esplendor, que ilumina tudo, é recebido de diversas maneiras, conforme o poder de cada ser em refletir essa luz. E, assim, o amor por Deus, que é a fonte de toda existência, arde de formas diferentes em cada um.”
Suas últimas palavras ecoaram em minha mente, como se tivessem sido gravadas nas estrelas. “Contempla, então, a grandeza do eterno valor, que se multiplica em tantos espelhos sem jamais perder sua unidade.”
E, naquele instante, percebi que, embora cada anjo fosse um reflexo individual da divindade, todos estavam unidos em uma única verdade, um único amor, um único propósito. A jornada não havia terminado, mas, de alguma forma, um novo entendimento começava a se formar dentro de mim.