Canto XVII
São Pedro exprobra os maus pastores da Igreja, e todos os santos manifestam a sua aprovação às palavras do Apóstolo. Novamente, o Poeta contempla a Terra e, depois, com Beatriz, eleva-se ao Primeiro Móvel.
A escuridão do espaço se desfez em luz. Um canto de glória, em uníssono, ressoou pelos céus, reverberando nas esferas acima e ao redor, “Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.” Cada nota do cântico inundava minha alma como vinho, embriagando não apenas meus ouvidos, mas também meus olhos. Ao redor, eu via o próprio universo sorrindo para mim, como se cada partícula de luz e som estivesse sintonizada em uma harmonia que eu nunca havia experimentado. A visão que se desdobrava diante de mim era de uma alegria inenarrável, uma paz que transcendia qualquer desejo terreno. Ali, cercado de amor e plenitude, eu senti que possuía uma riqueza que não poderia ser comprada ou medida, segura de qualquer ameaça.
À minha frente, quatro chamas permaneciam acesas, e a que surgira primeiro começou a brilhar com ainda mais intensidade. As luzes pareciam vivas, e aquela primeira chama, a mais próxima, pulsava com uma energia imensa, como se carregasse dentro de si o poder de Júpiter e Marte combinados, transformados em criaturas de fogo. A providência divina parecia ter imposto silêncio entre os bem-aventurados, como se o cosmos inteiro estivesse esperando por algo.
Então, uma voz ressoou, clara e ao mesmo tempo carregada de uma dor invisível. “Não te espantes se meu semblante mudar de cor,” disse a voz. “Pois o que vou dizer fará com que todos os que aqui estão também se transformem.” Algo denso e pesado pairava no ar enquanto a voz continuava: “Aquele que usurpa meu lugar na Terra, o trono que deveria estar vazio até a chegada do Filho de Deus, transformou meu santuário em uma fossa de sangue e podridão. O perverso, aquele que caiu deste lugar, encontrou consolo abaixo.”
De repente, o céu inteiro foi tingido de um tom crepuscular, como se o sol estivesse sendo encoberto por nuvens escuras. O horizonte, que antes irradiava luz celestial, agora parecia pintado com as cores de uma tormenta prestes a explodir. Beatriz, que até então permanecera firme ao meu lado, mudou de semblante. Vi o medo florescer em seu rosto, como uma mulher justa que, ao ouvir as falhas dos outros, começa a temer, ainda que não tenha cometido pecado algum. Era como se o próprio céu estivesse refletindo o sofrimento de Cristo durante sua paixão.
As palavras da voz continuaram, mais duras e severas, enquanto Beatriz mantinha-se inabalável, apesar de sua transformação: “A noiva de Cristo, a Igreja, não foi criada para buscar ouro, mas para encontrar a felicidade eterna. Santos como Sisto, Pio, Calisto e Urbano derramaram seu sangue após muitas lágrimas, não por riquezas terrenas, mas por um ideal mais elevado.” Eu senti o peso de cada palavra enquanto a voz continuava a denunciar a corrupção e a decadência que agora permeavam a Terra. “As chaves que me foram dadas, as chaves do Reino dos Céus, não foram feitas para se tornarem um símbolo em estandartes usados contra os próprios cristãos, nem para que eu fosse o selo de privilégios falsos vendidos como mercadorias.”
A voz exalava tristeza, e ao mesmo tempo uma indignação justa. “Lobos em pele de pastor, rapaces e famintos, vagueiam entre os campos sagrados, e o rebanho de Deus está desprotegido. Onde está a defesa divina?” Um silêncio sombrio caiu sobre mim enquanto a voz falava de sangue prestes a ser derramado por homens gananciosos, ansiosos por usurpar aquilo que não lhes pertencia. Mas então, algo mudou. A voz, antes tomada de ira e dor, suavizou-se um pouco, como se vislumbrasse uma redenção futura. “Mas assim como a providência protegeu Roma com a sabedoria de Cipião, ela logo virá em nosso socorro. E você, meu filho,” disse a voz, agora dirigida diretamente a mim, “quando retornar à Terra, não esconda o que viu aqui.”
Eu estava perdido nas palavras, absorto, até que uma chuva de luzes triunfantes desceu dos céus como flocos de neve, subindo e descendo como se participassem de um desfile de glória. Meus olhos seguiram aquelas formas etéreas até que desapareceram além do horizonte, deixando-me imóvel e extasiado. Foi então que senti o olhar de Beatriz sobre mim, e ela falou suavemente: “Abaixe os olhos e veja o quanto você já viajou.”
Obedeci, e, para minha surpresa, percebi que havíamos cruzado todo o arco celestial. Eu agora via claramente os limites do mundo conhecido, avistando além dos Pilares de Hércules, o ponto em que a travessia de Ulisses terminou. Para o outro lado, vislumbrei a costa onde Europa se tornou o fardo doce de Júpiter, carregada em seu disfarce. Se não fosse pelo avanço constante do sol sob meus pés, teria visto ainda mais.
Minha mente, sempre conectada a Beatriz, queimava de desejo de olhar novamente para ela, e quando finalmente cedi a essa tentação, fui recompensado por uma visão divina. Sua face irradiava um prazer tão puro e divino que todas as belezas da Terra, fossem de carne ou de arte, empalideceriam em comparação. O simples ato de olhar para ela me arrancou da órbita da Terra e me impulsionou para o céu mais rápido do que eu poderia compreender.
As palavras de Beatriz voltaram a mim com um sorriso sereno: “O centro do universo, onde todas as coisas encontram repouso, começa aqui, e este céu se move somente pela vontade de Deus. O amor e a luz que o sustentam o mantêm em um ciclo perpétuo, compreendido apenas por Aquele que o criou.” Ela falou sobre o movimento dos céus e do tempo, revelando segredos profundos sobre a estrutura do cosmos, enquanto a verdade dessas palavras me penetrava.
Mas então, sua voz se tornou mais grave, e ela começou a lamentar a condição humana. “Oh, cobiça, que afunda os mortais em profundezas de escuridão, arrastando-os como presas indefesas. O desejo nos homens floresce como a boa vontade, mas a constante chuva de tentações o transforma em frutos podres.” Sua tristeza parecia quase palpável enquanto ela descrevia como a inocência se esvai tão rapidamente das crianças e como os homens que um dia amaram e respeitaram suas mães, mais tarde ansiavam por vê-las enterradas. “A humanidade está sem governo, perdida,” disse ela, “mas em breve, a justiça voltará a brilhar, e a esperança florescerá mais uma vez.”
O horizonte diante de nós prometia tanto quanto as palavras de Beatriz, e meu coração ansiava por entender tudo que ela havia mostrado. O futuro, ainda incerto, parecia prenunciar redenção.