Canto XX
A Águia louva alguns reis antigos que foram justos e virtuosos. Depois, resolve a Dante uma dúvida: como podem estar no Céu alguns espíritos que, na sua opinião, quando em vida não tinham tido fé cristã?
Enquanto caminhávamos mais fundo no Paraíso, senti o calor suave e radiante que envolvia tudo ao nosso redor, como o sol ao se pôr, que aquece gentilmente o mundo antes de desaparecer além do horizonte. O brilho celestial era onipresente, mas, de repente, o céu mudou. O que antes parecia calmo e sereno começou a se encher de uma luz viva, intensa, como se milhões de estrelas começassem a acender ao mesmo tempo. Eu sabia que algo grandioso estava prestes a se revelar. A lembrança desse fenômeno celeste, o espetáculo da luz se espalhando pelo firmamento, trouxe à minha mente um pensamento inevitável: o quanto o destino dos líderes mundiais, mesmo os mais abençoados, estava nas mãos do divino. E, enquanto eu refletia sobre isso, o brilho ao nosso redor aumentava, e a canção angelical que ecoava ao longe se tornava mais forte, mas, ao mesmo tempo, inefável, quase impossível de ser capturada completamente pela minha memória.
Em meio à luz e ao som, senti o poder do amor puro e sagrado ao nosso redor. Era como se cada nota e cada raio de luz estivesse carregado com os pensamentos mais santos e puros, e aquilo me enchia de uma sensação de calor e paz indescritíveis. Quando as vozes dos anjos cessaram, o silêncio foi preenchido por um som diferente, um murmúrio, como o de um rio que desce por pedras claras, revelando a plenitude e a beleza de sua origem. O som era suave, mas presente, e ele subia pela forma majestosa da águia, cuja figura dominava a cena.
Aquele som, inicialmente sutil, transformou-se em palavras claras e compreensíveis. A águia, o símbolo do poder e da justiça divinos, começou a falar. A voz, que inicialmente parecia emergir de dentro dela, finalmente se manifestou por meio de seu bico, pronunciando palavras que pareciam destinadas a mim, como se meu coração já as esperasse. “Olhe atentamente para a parte de mim que reflete o Sol”, começou a águia, sua voz ecoando com autoridade, mas também com sabedoria. “Você deve prestar atenção àqueles cujas chamas brilham mais intensamente em meus olhos, pois eles estão entre os mais sublimes.”
Fiquei fascinado ao ouvir cada palavra e, enquanto ela falava, percebi que a luz central em seus olhos pertencia a Davi, o cantor do Espírito Santo, aquele que havia transportado a arca sagrada de cidade em cidade. Agora, em seu merecido lugar no Paraíso, ele compreendia o verdadeiro valor de sua devoção e seu canto, recompensado com uma eternidade de paz. Ao redor de Davi, outros espíritos brilhavam, suas luzes intensas rodeando o olho da águia. O que estava mais próximo ao bico, explicou a águia, era Trajano, o imperador que, em vida, havia consolado a viúva de seu filho morto. Agora, ele também entendia o quanto custava não seguir os ensinamentos de Cristo, aprendendo tanto a doçura desta vida eterna quanto os horrores da vida oposta.
Outros espíritos apareceram em torno da águia, cada um com sua própria história de redenção e compreensão dos caminhos divinos. Conversando sobre o eterno julgamento, a águia me explicou que o tempo e o arrependimento podem alterar o destino da alma, mas a justiça divina nunca falha. Aqueles que se arrependeram verdadeiramente, mesmo no último momento, agora compreendem o amor e a misericórdia de Deus. Fiquei profundamente tocado ao ouvir sobre Rifeu, o troiano, cuja presença aqui no círculo sagrado parecia impossível para qualquer um que, como eu, havia vivido no mundo. Ele, um pagão em vida, agora se encontrava entre os santos. A graça divina, misteriosa e incompreensível, havia aberto seus olhos para a redenção futura, permitindo que ele deixasse para trás o paganismo e abraçasse a verdade.
A águia continuou, revelando como a predestinação era uma força insondável, e como nós, mortais, não deveríamos ousar julgar os desígnios divinos. Mesmo eles, os santos que estavam na presença de Deus, não sabiam quem seriam todos os eleitos. A humildade diante da vontade divina era o que lhes trazia felicidade. Aceitar que o que Deus deseja é sempre para o bem, mesmo quando incompreensível, era o que refinava a alegria deles.
A cada palavra da águia, senti um peso crescente em meu coração, uma sensação de admiração que me impelia a falar. Não pude conter a pergunta que me atormentava: “Que coisas são essas?” A ânsia por entender o mistério que estava diante de mim era irresistível, e minha pergunta irrompeu de mim como se uma força invisível me empurrasse. Em resposta, a águia, com uma calma majestosa, esclareceu minhas dúvidas. “Vejo que você acredita no que digo porque estou dizendo, mas você não entende como essas coisas acontecem. Você é como alguém que conhece o nome de uma coisa, mas não sua essência.”
Ela me explicou que o Reino dos Céus pode ser conquistado pela força do amor ardente e da esperança viva, que, de alguma forma, triunfam sobre a vontade divina, não como um ser humano domina outro, mas porque Deus deseja ser vencido por esse amor, e ao ser vencido, Ele vence com sua bondade infinita. Essas palavras encheram minha alma de luz e compreensão, e a visão daqueles espíritos, cujas histórias agora conhecia, me trazia uma paz que eu não sabia ser possível.
À medida que a águia falava, vi as luzes ao redor dela se moverem em perfeita harmonia com suas palavras, como se cada palavra estivesse conectada ao bater de asas invisíveis, uma dança de chamas sagradas que brilhavam e cintilavam diante de mim.