Canto XIX
Dante fala à Águia, externando uma antiga dúvida: se alguém pode salvar-se sem ter conhecimento da lei de Cristo. Respondendo, a Águia aproveita a ocasião para repreender os malvados reis cristãos de seu tempo, que nunca obterão a graça de Deus.
O rosto do gigantesco águia de fogo apareceu diante de mim com suas asas abertas, resplandecente como nunca antes havia visto. As almas que formavam essa imagem celestial estavam unidas em um coro de pura felicidade, como se cada uma delas fosse uma brasa incandescente, um rubi que refletia a luz divina com uma intensidade que queimava em meus olhos. A luz que emanava delas parecia mais brilhante do que qualquer coisa que eu já tivesse presenciado na terra, refletindo como o sol em um espelho, e eu mal conseguia encarar tal esplendor sem ser cegado. O que estava diante de mim era indescritível. Nem voz humana, nem escrita, nem mesmo as mais vivas fantasias teriam sido capazes de expressar o que eu estava experimentando. No entanto, ali estava eu, vendo e ouvindo algo que transcende a compreensão terrena, uma entidade celestial que falava com uma voz que carregava em si a ideia de coletividade e de unidade, uma mistura harmoniosa de “eu” e “nós”, de “meu” e “nosso”.
A voz ecoava pelos céus, profunda e rica, como se cada palavra carregasse o peso de séculos de sabedoria e justiça. “Eu estou aqui”, disse a águia, “por ser justo e piedoso, e por isso fui elevado a essa glória eterna que não pode ser superada nem pelo maior dos desejos.” Havia um orgulho sereno em sua voz, como alguém que compreendia a magnitude de sua posição, mas que também carregava uma humildade intrínseca. “Deixei na terra uma memória de tal forma que até as almas mais corruptas reconhecem e louvam meus feitos, ainda que não sigam meu exemplo.” Senti uma reverência crescente dentro de mim, não apenas pelo poder que aquela entidade celestial emanava, mas pela lição sutil sobre a moralidade humana.
Eu não pude resistir e, com um suspiro de alívio e desejo, falei: “Ó flores eternas da alegria, que com um único perfume me envolvem, libertem-me dessa fome antiga que me consome, dessa sede de respostas que não consegui saciar na Terra.” Meus pensamentos estavam carregados de incerteza, de dúvidas que pareciam me corroer por dentro, e eu implorava por alguma luz que pudesse me guiar. Eu sabia, sem dúvida, que ali, no céu, onde a justiça divina brilha com mais clareza do que em qualquer outro lugar, não havia véus ou segredos que pudessem impedir a compreensão. Era hora de finalmente entender o que há muito tempo eu buscava.
A resposta veio rapidamente, tão nítida quanto as estrelas no firmamento. O grande águia moveu a cabeça, suas asas bateram no ar como um falcão que, liberto de seu capuz, exibe sua majestade antes de partir para a caça. Suas palavras eram como um canto divino, reverberando com uma intensidade que transcende qualquer música terrena. “Aquele que desenhou o arco do universo e separou o visível do invisível”, começou, “não imprimiu no cosmos todo o poder da palavra divina, pois o poder divino excede infinitamente o que qualquer criatura poderia compreender.”
O que se seguiu foi uma revelação que me fez sentir pequeno diante da imensidão da criação. A justiça divina, percebi, é um mistério profundo, muito além da capacidade humana de entender plenamente. Como um olho que, olhando para o mar, vê o fundo raso próximo da costa, mas não consegue enxergar as profundezas do oceano, assim é nossa visão da justiça eterna. Nós, mortais, estamos limitados. Nossa compreensão é curta, nossas percepções estão envoltas em sombras e nossos julgamentos são feitos com base em apenas uma fração da verdade.
O águia continuou, suas palavras perfurando minha alma: “Quem és tu para julgar a milhares de milhas de distância, com uma visão tão limitada?” Senti o peso de sua pergunta cair sobre mim como uma verdade inegável. Como poderia eu, um simples mortal, ousar questionar o que é justo e o que não é, quando a justiça divina abrange a totalidade do tempo e do espaço, de formas que eu jamais poderia compreender? Minhas dúvidas sobre aqueles que nunca ouviram falar de Cristo, sobre a condenação dos inocentes, começaram a se dissipar. “A vontade divina é justa por si só”, disse ele, “e nenhum bem criado pode desviar ou alterar essa vontade.”
Enquanto as palavras da águia ressoavam em mim, olhei para cima e vi a imagem abençoada girando, suas asas movidas por uma sabedoria divina além de minha compreensão. Sua música celestial encheu o ar, e o mistério da justiça eterna se revelou ainda mais claro: aquilo que nos parece incompreensível, na verdade, tem um propósito maior que nossos corações humanos são incapazes de alcançar. “O julgamento eterno é como essas notas”, disse o águia, “tão incompreensíveis para vocês, mortais, quanto a música celestial é para seus ouvidos.”
Então, em um momento de repouso, a águia voltou sua atenção para mim, e sua voz tornou-se novamente clara e direta. “Nunca subiu a este reino”, explicou ele, “quem não acreditou em Cristo.” A solidez de suas palavras, o tom absoluto que usou para afirmar tal verdade, parecia incontestável. Porém, em seguida, ele ofereceu um pensamento que me deixou perplexo: muitos que clamam ‘Cristo, Cristo!’ serão mais distantes d’Ele no juízo final do que aqueles que nunca O conheceram. E assim, aqueles que agora vivem na ignorância de Sua palavra podem, no fim, ser mais próximos do Reino dos Céus do que os que, conhecendo a verdade, a negligenciam."
O ar ao meu redor parecia vibrar com o peso de suas palavras. Minha mente fervilhava, tentava processar tudo, enquanto a águia prosseguia, falando de reis e reinos, de atos de tirania e de traições, revelando segredos que um dia seriam conhecidos por todos. O destino das almas e das nações estava sendo traçado ali, diante de mim, como se o grande livro do julgamento final estivesse começando a ser aberto.
O que eu havia testemunhado era a mais pura manifestação da justiça divina. E ali, naquele momento, compreendi que a verdadeira justiça não é algo que possamos entender completamente, mas algo que devemos aceitar com fé. As chamas da águia brilhavam cada vez mais intensas, como se queimassem a dúvida que antes existia em mim, substituindo-a por uma clareza serena e um entendimento mais profundo da imensidão da vontade divina.