Canto XVIII
Beatriz conforta o Poeta. Cacciaguida mostra-lhe outros espíritos que combateram pela fé cristã. Sobem depois a Júpiter, onde estão as almas dos príncipes que governaram com justiça. Os espíritos se dispõem de maneira a desenhar palavras de conselho aos que governam; por último, se compõem na forma de uma águia.
Eu estava imerso na majestade do paraíso, meu espírito flutuando entre a vastidão do cosmos e o amor divino que fluía de todas as direções. Cada palavra proferida por aqueles espíritos abençoados parecia carregar um peso incomensurável, e eu, com o coração ainda tomado pelo sabor agridoce da minha jornada, tentava equilibrar as emoções. Beatrice, sempre presente, sempre guiando, me alertou com suavidade para que eu mudasse meus pensamentos. “Pensa em mim, pois estamos próximos daquele que desfaz todas as injustiças”, ela disse, sua voz como uma melodia celestial, um chamado suave, mas firme.
Meu corpo, quase por reflexo, se virou em direção ao som da sua voz, e naquele momento, quando nossos olhares se cruzaram, o amor que vi em seus olhos era indescritível. Eu poderia tentar capturar em palavras o que senti, mas qualquer tentativa seria inútil, pois o que vivi transcende a linguagem mortal. A minha mente simplesmente não conseguiria regressar àquele estado de êxtase sem ser guiada novamente.
Ainda assim, posso recordar o suficiente. Ao fitá-la, senti todo o desejo de minha alma ser liberto de qualquer outra distração, como se todas as dúvidas e anseios terrenos evaporassem diante da beleza e da serenidade que irradiava de Beatrice. Enquanto a luz eterna que emanava dela preenchia meu ser, eu me encontrava em paz, finalmente pleno, até que, com um sorriso que superava qualquer resplendor, ela me disse: “Vire-se e escute. Pois não é apenas em meus olhos que reside o paraíso”.
Com uma combinação de reverência e curiosidade, voltei minha atenção para o espetáculo à minha frente. No centro de um relâmpago divino, algo me chamou, uma presença ansiosa por compartilhar sabedoria. Ele começou a falar, e enquanto eu ouvia, o céu parecia expandir-se, como se o próprio espaço estivesse se moldando para acomodar o peso de suas palavras. Estávamos na quinta esfera, ele explicou, onde os espíritos abençoados se encontravam, aqueles que, em vida, haviam deixado marcas profundas na história, celebrados e louvados por suas ações virtuosas.
Ele nomeou Josué, e ao fazer isso, uma luz atravessou a cruz diante de mim, uma estrela ardente que se movia com o mesmo poder e propósito com que Josué guiou os israelitas. E então, ao invocar Macabeu, vi outra luz girar e rodopiar em uma dança de alegria pura. A mesma alegria impulsionava as luzes de Carlos Magno e Orlando, cujas presenças me faziam lembrar um falcão em pleno voo, caçando com precisão e graça. Meu olhar foi então atraído por outras figuras, Guiglielmo, Rinoardo, o duque Gottifredo e Roberto Guiscardo, cada um uma chama brilhando na vastidão daquela cruz celestial.
A alma que havia falado antes estava entre essas luzes, uma entre muitos, mas inegavelmente única. Quando olhei para Beatrice, esperando sua aprovação ou instrução, seus olhos irradiavam uma pureza e uma alegria tão intensas que eclipsavam qualquer outra visão que eu havia experimentado. Era como se a cada instante que passava, a própria virtude em meu coração crescesse, e com ela, a minha capacidade de compreender e apreciar aquele espetáculo divino.
De repente, a estrela que nos havia acolhido, aquela estrela jovial e brilhante, parecia vibrar com uma energia ainda mais poderosa, como se estivesse prestes a revelar um segredo profundo. E então, diante de meus olhos, os espíritos começaram a voar, cantando e formando letras no ar, compondo palavras sagradas. Primeiro, formaram “DILIGITE IUSTITIAM”, amem a justiça, e depois, “QUI IUDICATIS TERRAM”, vós que julgais a Terra.
A beleza daquelas palavras resplandecia na imensidão celestial, como se fossem gravadas no próprio tecido do cosmos. As luzes se rearranjaram, formando a letra “M” no centro, e ali, no topo desse símbolo sagrado, mais luzes desceram, encontrando seu lugar como chamas ardentes, cantando o bem que as movia.
Enquanto eu assistia, o céu parecia explodir em faíscas, como se mil estrelas tivessem sido lançadas em todas as direções, subindo e se acomodando em uma ordem sublime. E então, diante de mim, as luzes se fundiram, formando a imagem de uma águia, um símbolo tão forte e vívido que parecia viva, cintilando com a luz da justiça divina.
Naquele instante, a mente que governa o universo parecia pintar essa imagem sem necessidade de orientação, como um artista divino que guiava a si mesmo. A águia, formada de luzes, representava algo mais profundo que qualquer simples figura, era um símbolo do poder celestial, uma manifestação visível da justiça de Deus.
Enquanto eu contemplava aquela cena, um pensamento se agitou em mim. A justiça do céu estava sendo mostrada a mim de maneira clara, mas ao mesmo tempo, uma sombra pairava sobre a Terra. Beatrice me olhou, e percebi que ela compartilhava a mesma preocupação. Eu sabia o que precisava ser feito: a corrupção que infestava o templo sagrado, a venda e compra que manchavam os sinais divinos, deveria ser purificada. Os homens que um dia travaram guerras justas, agora se dedicavam a roubar o pão que o Pai oferecera a todos. E era hora de essa injustiça ser corrigida.
No fundo do meu coração, senti uma renovada determinação, uma vontade de clamar pela justiça divina, enquanto a águia brilhava acima de mim, imponente e cheia de propósito. E assim, com o espírito repleto de reverência, eu me preparei para seguir adiante, pronto para testemunhar o próximo capítulo dessa jornada celestial, sabendo que, mesmo nas alturas do paraíso, as questões da Terra ainda ecoavam, pedindo redenção.