Canto XVI
O poeta orgulha-se da nobreza da sua família. Cacciaguida continua falando a respeito da própria família e da antiga Florença. Deplora a chegada em Florença de cidadãos de outras terras. Lembra as maiores famílias da cidade, muitas das quais, no tempo de Dante, estavam empobrecidas ou maculadas de infâmia.
Enquanto caminhava pelas esferas luminosas, guiado pela presença etérea de Beatriz, meu espírito oscilava entre um sentimento de reverência e a curiosidade insaciável que me impelia a saber mais sobre as origens de minha linhagem. As almas que habitavam esse espaço celestial carregavam uma serenidade tão sublime que o próprio tempo parecia se dissolver diante de suas existências. Aqui, onde o desejo não se desvia da justiça divina, onde a glória é uma constante, senti uma profunda conexão com a minha ancestralidade.
“Quero entender”, pensei, “quero saber quem foram aqueles que me precederam, aqueles cujas escolhas moldaram não só a mim, mas a própria essência desta cidade que tanto amo e tanto lamento.”
Beatriz sorriu, seus olhos cintilavam como estrelas refletidas em um lago tranquilo. Era como se ela soubesse que a minha jornada de descoberta pessoal estava apenas começando, e sua leveza parecia encorajar minha curiosidade. Sua risada ecoou pelo espaço, me lembrando daquele breve momento em que Ginevra falhou em sua fidelidade. Mas esse não era o momento para me perder em histórias alheias. Agora, a minha mente fervilhava com a esperança de entender mais sobre meus antepassados, de encontrar em suas histórias o fio que conectava o passado ao presente.
Olhei para aquele que, ali, representava a minha ancestralidade mais próxima, a alma brilhante que irradiava sabedoria. “Vós sois meu pai,” disse com uma confiança que emergiu inesperadamente. “De vós recebo a força para falar, para me erguer acima de mim mesmo, para ser mais do que sou.”
O ambiente ao redor pulsava com uma energia intensa, e minha mente se inundava de alegria e de gratidão. Havia tantas perguntas a serem feitas, tantas histórias a serem descobertas. Sentia uma clareza incomum, como se o peso de toda uma vida de incertezas fosse momentaneamente afastado. Continuei, desejando beber cada gota da sabedoria que me fosse oferecida. “Dizei-me, então, caro pai, quem foram vossos antigos? Quais foram os anos que marcaram vossa juventude? E o rebanho de São João… como era naquele tempo? Quem eram os dignos entre eles?”
Ao ouvir minhas palavras, vi a luz daquela alma reluzir mais intensamente, como um carvão que, ao ser tocado pelo vento, brilha mais forte. E quando ele falou novamente, sua voz era de uma doçura indescritível, fluindo com a suavidade de um rio tranquilo. Não usava mais a linguagem moderna, mas algo antigo, um dialeto que me pareceu tanto familiar quanto misterioso. Ele começou a contar sua história, um relato que se estendia através dos séculos.
“Desde o dia em que a palavra ‘Ave’ foi pronunciada,” começou ele, referindo-se à saudação do anjo a Maria, “até o parto em que minha mãe se aliviou de mim, quinhentos e trinta anos se passaram.” Ele descreveu como seus ancestrais e ele próprio nasceram em um local sagrado, perto do que agora se tornara um símbolo dos jogos anuais da cidade, algo que trazia honra, mas também era marcado pelo peso do tempo e das transformações. Ele mencionou seus antepassados com uma reverência contida, preferindo não expor detalhes demais. “Mais vale calar do que falar,” disse, como se soubesse que algumas coisas devem permanecer envoltas no mistério.
À medida que continuava, o tema se desviava para a pureza da cidade de Florença em tempos antigos, quando a população era diferente, menos misturada com os estrangeiros que agora a habitavam. Havia uma nostalgia palpável em suas palavras, um lamento pelo que Florença poderia ter sido, caso suas fronteiras tivessem permanecido intactas, sem a invasão de forasteiros que trouxeram consigo costumes corruptos.
Enquanto ouvia atentamente, pude sentir a dor subjacente em suas palavras, uma dor que ressoava com o estado atual da cidade. Ele lamentou os conflitos internos, o declínio moral, e a crescente divisão entre os cidadãos. Seus lamentos não eram apenas sobre o passado, mas sobre como as escolhas erradas de certas famílias levaram Florença a um caminho de destruição. Cidades inteiras, como Luni e Orbisaglia, desapareceram, e outras, como Chiusi e Sinigaglia, logo as seguiriam.
“Tudo neste mundo tem um fim,” ele disse, sua voz impregnada de uma sabedoria triste. “Assim como vocês, as cidades também morrem.”
Ele falou sobre as famílias nobres de Florença, mencionando nomes que um dia haviam brilhado, mas que agora estavam em declínio ou extintas. Os Ughi, os Catellini, os Filippi, os Greci… cada nome evocado com respeito, mas também com um toque de melancolia, pois a maioria já havia desaparecido. As raízes profundas que um dia sustentaram a cidade estavam agora murchando, e Florença, como um touro cego, caminhava rapidamente para a queda.
A narrativa continuava, e eu me via cada vez mais imerso no mundo daqueles que moldaram o destino de minha terra natal. O peso da história, da honra perdida e das tragédias que se seguiram, pressionava meu coração. A cidade outrora pura agora carregava o fardo da corrupção, e aqueles que antes eram os pilares da moralidade estavam caindo como folhas no outono.
Quando a alma finalmente mencionou o nome de Buondelmonte, senti um calafrio. Ele descreveu como o casamento fracassado de Buondelmonte, influenciado pelos conselhos errados, desencadeou um ciclo de violência que ainda marcava Florença. Quantas vidas poderiam ter sido diferentes se ele tivesse seguido outro caminho?
A narrativa se aproximava de seu fim, e o lamento de Florença ecoava em meus ouvidos. O passado glorioso da cidade estava se desintegrando diante de meus olhos, e eu, agora, entendia melhor a profundidade da decadência que a assolava. As glórias de outrora, representadas pelo lírio que nunca havia sido manchado, agora pareciam uma memória distante.
Enquanto aquela alma iluminada terminava sua fala, a cidade de Florença, tanto a antiga quanto a moderna, parecia pender no ar como uma sombra, oscilando entre a redenção e a ruína. Eu, movido por um misto de reverência e tristeza, sabia que essa revelação era apenas um fragmento da verdade maior que ainda estava por vir.