Canto XV
As almas dos combatentes pela fé em Cristo estão dispostas em forma de cruz, vexilo de martírio e de vitória. Do lado direito dessa cruz, move-se um espírito que, com paternal afeto, saúda Dante. É Cacciaguida, seu trisavô. Descreve ele a inocência dos costumes do seu tempo e lembra como morreu combatendo pelo sepulcro de Cristo, na segunda cruzada.
O calor abrasador da luz celestial parecia derreter meus pensamentos enquanto eu flutuava nas camadas superiores do Paraíso. O brilho à minha frente era intenso, mas não doloroso. Era como se cada raio tocasse minha alma, acendendo em mim uma sensação de propósito e compreensão que, até então, nunca havia experimentado. Beatrice, sempre ao meu lado, irradiava uma tranquilidade que eu ansiava alcançar, e em seus olhos havia algo mais profundo, uma promessa de redenção e alegria. Porém, naquele momento, meus pensamentos foram interrompidos pela súbita quietude ao meu redor. O som harmonioso das esferas celestiais cessou, como se o próprio céu estivesse se preparando para uma revelação divina.
A quietude foi quebrada pelo surgimento de um astro brilhante, um fogo celestial que rasgou o éter com a força de um relâmpago. Ele se moveu com uma graça impossível, sua luz refletida no manto celestial como se o firmamento fosse feito de cristal. A visão era magnífica e me trouxe à memória a imagem da sombra de Anchises ao encontrar seu filho Eneias, em outro plano, em outro tempo, nas profundezas do Elísio. “Ó sangue meu,” ouvi a voz da luz dizer, e imediatamente soube que aquele era alguém ligado a mim, de uma forma que transcendia a compreensão mortal. A emoção tomou conta de mim, e, por um instante, o peso da glória que eu presenciava foi esmagador.
Me virei para Beatrice, buscando nela a força para enfrentar aquilo que estava por vir. Ela me sorriu com uma doçura que acendeu meu espírito, e naquele momento, senti como se pudesse voar. Voltei meu olhar para o astro à minha frente, cuja luz vibrava com o fervor de um amor puro e imortal, e ouvi sua voz novamente, agora mais clara, mais próxima. “Bendito seja tu, trino e uno,” disse ele, uma reverência que eu sabia ser destinada à bondade infinita que nos cercava.
Suas palavras continuaram, revelando verdades profundas, mas o que mais me impressionou foi a certeza com que falava do meu caminho, como se tudo já estivesse escrito nas estrelas, imutável. Ele me chamou de filho e me disse que, graças à intervenção de Beatrice, eu havia sido capaz de compreender coisas que poucos mortais sequer poderiam sonhar. Sua voz era firme, mas cheia de ternura, e me senti pequeno diante da imensidão de sua sabedoria e da clareza com que ele percebia o divino.
“Tu acreditas que teus pensamentos vêm de mim,” ele continuou, “assim como da luz se derivam os números.” Eu sabia que ele falava a verdade, mas ainda assim, havia algo em mim que hesitava em aceitar plenamente o destino que ele traçava diante de mim. Ainda que minhas asas fossem frágeis e mortais, ele, naquela luz infinita, me via como parte de algo muito maior. Pedi, então, com humildade, que ele revelasse seu nome, ansiando pela conexão direta com aquela alma resplandecente que tanto me conhecia.
“Ó minha fronda, em quem tanto me comprazia,” ele respondeu com um sorriso em sua voz. “Eu sou tua raiz.” Essas palavras perfuraram meu coração com um misto de alegria e responsabilidade. Ele revelou ser Cacciaguida, meu antepassado, e ao fazê-lo, me levou de volta a uma época de paz e simplicidade, descrevendo uma Florença que eu mal conseguia imaginar. Seus detalhes sobre a cidade, antes de sua decadência, pintaram um quadro de um lugar puro, onde o povo vivia com honra e humildade. Seus olhos, eu sabia, brilhavam com o pesar de alguém que havia visto o mundo mudar, talvez para pior, mas também com a esperança de que eu pudesse, de alguma forma, trazer essa glória de volta.
Enquanto Cacciaguida falava, eu podia sentir o peso de sua história me envolvendo, suas palavras dançando ao meu redor, repletas de significado. Ele mencionou os nomes de meus antepassados, falou de como a simplicidade havia sido substituída pela ganância, e de como Florença, outrora uma cidade pura e pacífica, se tornara refém de suas próprias ambições. E então, quase como se falasse para si mesmo, ele lamentou o estado atual das coisas, lembrando-se de um tempo em que o orgulho e a moralidade eram as coroas mais valiosas que um homem poderia carregar.
“Mas eu fui levado desta vida enganosa,” ele disse com uma serenidade que me arrepiou a espinha. “E cheguei a esta paz através do martírio.” Suas últimas palavras pairaram no ar, reverberando no espaço ao nosso redor, e eu soube, com uma certeza que transcende a razão, que o caminho diante de mim seria cheio de desafios, mas também de graça. O sacrifício de Cacciaguida era uma lembrança do que estava em jogo e de como a redenção, em última análise, poderia ser alcançada, mesmo nas trevas mais profundas.
Enquanto a luz ao meu redor brilhava cada vez mais intensamente, e Beatrice sorria silenciosa ao meu lado, senti meu coração se encher de uma paz que eu nunca havia conhecido.