Canto I

Seguindo as teorias de Ptolomeu, Dante coloca a Terra imóvel no centro do universo e, ao seu redor, em órbitas concêntricas, os céus da Lua, de Mercúrio, de Vênus, do Sol, de Marte, de Júpiter, de Saturno, a oitava esfera, que é a das estrelas fixas, a nona, ou primeiro móvel, e, finalmente, o Empíreo, que é imóvel. Transportado pela força que faz rodar os céus e pela luz sempre crescente de Beatriz, Dante eleva-se de um céu para outro, e em cada um deles lhe aparecem os espíritos bem-aventurados que, quando vivos, possuíram a virtude própria do respectivo planeta.


Quando a luz da manhã tocou minha pele, algo em mim mudou. Não era só o brilho do sol. Era como se minha existência inteira fosse puxada por uma força que eu não conseguia resistir — leve, mas impossível de ignorar. A presença daquele que move todas as coisas atravessava o universo, preenchendo tudo, com mais ou menos intensidade, conforme a pureza do lugar que recebia essa luz. E ali, no ponto mais próximo dessa fonte infinita, eu estava.

Beatriz, ao meu lado, parecia ainda mais iluminada, como se fizesse parte daquela luz. Olhei ao redor, e o que vi era impossível de descrever. Nenhuma mente humana conseguiria entender aquilo. Quando a gente se aproxima do que mais deseja, entra num espaço tão imenso que até a memória se perde.

Ali, naquele lugar de luz e entendimento, percebi que qualquer parte do que eu conseguisse trazer de volta já seria suficiente para se tornar o centro do que eu teria a dizer. Mas eu sabia que não conseguiria sozinho. Então, pedi ajuda a Apolo, o deus da poesia:

— Apolo, me inspira com a força que arrancou a pele de Mársias. Me dá condições de mostrar aos outros o que estou prestes a ver. Me ajuda a transformar em palavras a lembrança do que ficou gravado em mim.

Se eu conseguisse fazer isso, estaria no caminho do madeiro sagrado — e talvez fosse digno da coroa de louros. Até aqui, só uma das montanhas do Parnaso tinha bastado. Mas agora, eu precisava das duas. Precisava de toda a força possível.

Beatriz, como sempre, parecia entender o que eu sentia. Com os olhos fixos no sol e uma postura serena, ela enxergava algo que ainda escapava de mim — como uma águia que encara a luz sem desviar. Observei seu exemplo e, sem perceber, meus olhos também se voltaram para o sol, passando do limite do que é permitido aos mortais.

Foi então que tudo mudou. A luz do sol parecia se multiplicar, como se outro dia estivesse nascendo. A claridade era tão intensa que senti meu corpo envolvido por uma energia difícil de conter. Minha mente queimava, como ferro saindo do fogo. E, num instante de total clareza, percebi que estávamos subindo.

Beatriz percebeu minha confusão. Virou-se para mim e disse, com calma:

— Sua imaginação está te enganando. Já não estamos mais na Terra. A velocidade com que subimos é mais rápida que o raio que corta o céu.

A firmeza na voz dela me trouxe de volta ao foco, mas ainda me restava uma dúvida: como era possível subir entre os astros sem sentir nada? Meu corpo, que até então sentia o peso da gravidade, agora parecia leve, como se flutuasse entre as estrelas.

Ela respirou fundo, como quem tranquiliza uma criança. E, com os olhos cheios de compreensão, disse:

— Tudo no universo obedece a uma ordem. É essa ordem que faz as coisas se parecerem com Deus. Cada criatura, de acordo com sua natureza, vai para o lugar que lhe corresponde — na Terra ou no céu. Esse movimento é tão natural quanto o fogo que sobe ou a pedra que cai. Não devia se surpreender por estar subindo. O que seria estranho seria continuar parado, como uma chama viva presa ao chão.

As palavras dela fizeram total sentido. Olhei para o céu, agora sem fim, e entendi que não havia mais volta. Estávamos sendo levados por uma força maior que tudo — invisível, mas impossível de resistir — que nos puxava em direção à luz eterna.